18 de abr. de 2010

ENTREVISTA COM ERIC HOBSBAWM

Eric Hobsbawm, autor de "Era dos Extremos", em festival literário no País de Gales, em 2009
David Levenson - 24.mai.09/Getty Images
UM DOS MAIS INFLUENTES HISTORIADORES VIVOS, ERIC HOBSBAWM DIZ QUE A CRISE ECONÔMICA LEVOU À REDESCOBERTA DE MARX E QUE O EQUILÍBRIO MUNDIAL DEPENDE DAS POTÊNCIAS EMERGENTES



DA "NEW LEFT REVIEW"
Aos 92 anos, o historiador britânico Eric Hobsbawm continua um feroz crítico da prevalência do modelo político-econômico dos EUA. Para ele, o presidente americano Barack Obama, ao lidar com as consequências da crise econômica, desperdiçou a chance de construir maneiras mais eficazes de superá-la.

"Podemos desejar sucesso a Obama, mas acho que as perspectivas não são tremendamente encorajadoras", diz, na entrevista abaixo. "A tentativa dos EUA de exercer a hegemonia global vem fracassando de modo muito visível."

Hobsbawm discute ainda questões globais contemporâneas -como as tentativas de criar Estados supranacionais, a xenofobia e o crescimento econômico chinês- à luz do que expressou em livros como "Era dos Extremos" e "Tempos Interessantes" (ambos publicados pela Cia. das Letras).

PERGUNTA - "Era dos Extremos" termina em 1991, com um panorama de avalanche global -o colapso das esperanças de avanços sociais da era de ouro [para Hobsbawm, 1949-73]. Quais são as mudanças mais importantes desde então?

ERIC HOBSBAWM - Vejo quatro mudanças principais. Primeiro, o deslocamento do centro econômico do mundo do Atlântico Norte para o sul e o leste da Ásia. Isso já estava começando no Japão nas décadas de 1970 e 80, mas a ascensão da China desde os anos 1990 vem fazendo uma diferença real.

Em segundo lugar, é claro, a crise mundial do capitalismo, que vínhamos prevendo, mas que, mesmo assim, levou muito tempo para ocorrer. Em terceiro, a derrota retumbante da tentativa dos EUA de exercer a hegemonia global solo a partir de 2001.

Em quarto lugar, a emergência de um novo bloco de países em desenvolvimento, como entidade política -os Brics [Brasil, Rússia, Índia e China]-, não tinha acontecido quando escrevi "Era dos Extremos".

E, em quinto lugar, a erosão e o enfraquecimento sistemático da autoridade dos Estados: dos Estados nacionais no interior de seus territórios e, em grandes regiões do mundo, de qualquer tipo de autoridade de Estado efetiva. Isso se acelerou em um grau que eu não teria previsto.

PERGUNTA - O que mais o surpreendeu desde então?

HOBSBAWM - Nunca deixo de me espantar com a pura e simples insensatez do projeto neoconservador, que não apenas fez de conta que a América fosse o futuro, mas chegou a pensar que tivesse formulado uma estratégia e uma tática para alcançar esse objetivo. Pelo que consigo enxergar, ele não tinha uma estratégia coerente, em termos racionais.

Em segundo lugar -fato muito menor, mas significativo-, o ressurgimento da pirataria, algo que já tínhamos em grande medida esquecido; isso é novo.

E a terceira coisa, que é ainda mais local: a derrocada do Partido Comunista da Índia (Marxista) em Bengala Ocidental [no leste da Índia], algo que eu realmente não teria previsto.

PERGUNTA - O sr. visualiza uma recomposição política daquilo que foi no passado a classe trabalhadora?

HOBSBAWM - Não em sua forma tradicional. Marx [1818-83] acertou, sem dúvida, quando previu a formação de grandes partidos de classe em determinado estágio da industrialização. Mas esses partidos, quando foram bem-sucedidos, não operaram puramente como partidos da classe trabalhadora: se queriam estender-se para além de uma classe estreita, o faziam como partidos do povo, estruturados em torno de uma organização inventada pela classe trabalhadora e voltada a alcançar os objetivos dela.

Mesmo assim, havia limites à consciência de classe. No Reino Unido, o Partido Trabalhista nunca conquistou mais de 50% dos votos. O mesmo se aplica à Itália, onde o Partido Comunista era muito mais um partido do povo.

Na França, a esquerda era baseada sobre uma classe trabalhadora relativamente fraca, mas que conseguiu se reforçar como sucessora essencial da tradição revolucionária.

O declínio da classe operária manual na indústria parece, de fato, ter atingido seu estágio terminal.

Houve três outras mudanças negativas importantes. Uma delas, é claro, é a xenofobia -que, para a maior parte da classe trabalhadora é, nas palavras usadas certa vez por [August] Bebel, "o socialismo dos tolos": proteja meu emprego contra pessoas que estão competindo comigo.

Em segundo lugar, boa parte da mão de obra e do trabalho nos setores que a administração pública britânica qualificava no passado como "graus menores e manipulativos" não é permanente, mas temporária. Assim, não é fácil enxergá-la como tendo potencial de ser organizada.

A terceira e mais importante mudança é, a meu ver, a divisão crescente gerada por um novo critério de classe: a saber, a aprovação em exames de escolas e universidades como critério de acesso a empregos. Pode-se dizer que se trata de uma meritocracia, mas ela é medida, institucionalizada e mediada por sistemas de ensino.

O que isso fez foi desviar a consciência de classe da oposição aos patrões para a oposição a representantes de alguma elite: intelectuais, elites liberais, pessoas que se erguem como superiores a nós.

PERGUNTA - Que comparações o sr. traçaria entre a crise atual e a Grande Depressão?

HOBSBAWM - [A crise de] 1929 não começou com os bancos -eles só caíram dois anos mais tarde. O que aconteceu, na verdade, foi que a Bolsa de Valores desencadeou uma queda na produção, com um índice muito mais alto de desemprego e um declínio real muito maior na produção do que havia ocorrido em qualquer momento até então.

A depressão atual levou mais tempo sendo preparada que a de 1929, que pegou quase todos de surpresa. Deveria ter sido claro desde cedo que o fundamentalismo neoliberal gerou uma instabilidade enorme nas operações do capitalismo. Até 2008, isso pareceu afetar apenas as áreas periféricas -a América Latina nos anos 1990 e no início da década de 2000; o Sudeste Asiático e a Rússia.

Parece-me que o verdadeiro indício de algo grave acontecendo deveria ter sido o colapso da Long-Term Capital Management [fundo de investimentos sediado nos EUA], em 1998, que provou como estava errado o modelo inteiro de crescimento. Mas o incidente não foi visto como tal. Paradoxalmente, a crise levou vários empresários e jornalistas a redescobrirem Karl Marx como alguém que tinha escrito algo interessante sobre uma economia globalizada moderna.

A economia mundial em 1929 era menos global do que é hoje. Isso exerceu algum efeito, é claro. A existência da União Soviética não exerceu efeito concreto sobre a Depressão, mas seu efeito ideológico foi enorme: significava que havia uma alternativa.

Desde os anos 1990, temos assistido à ascensão da China e das economias emergentes, fato que vem realmente exercendo um efeito concreto sobre a depressão atual, na medida em que esses países vêm ajudando a manter a economia mundial muito mais equilibrada do que ela estaria sem eles.

PERGUNTA - O sr. antevê que a China continue a resistir ao declínio?

HOBSBAWM - Não há nenhuma razão em especial para prever que a China pare de crescer de uma hora para outra. A depressão causou um choque grave ao governo chinês, na medida em que paralisou muitas indústrias, temporariamente. Mas o país ainda se encontra nos estágios iniciais do desenvolvimento econômico, e há espaço enorme para expansão.

É claro que o país ainda enfrenta grandes problemas; sempre há pessoas que se perguntam se a China vai conseguir continuar unida. Mas acho que as razões reais e ideológicas para que as pessoas desejem que a China se mantenha unida continuam muito fortes.

PERGUNTA - Que avaliação o sr. faz da administração Obama?

HOBSBAWM - As pessoas ficaram tão satisfeitas com a eleição de um homem como ele, especialmente em um momento de crise, que pensaram que certamente seria um grande reformador, que faria o que Roosevelt [1933-45, responsável pelo New Deal, série de programas econômicos e sociais contra a Grande Depressão] fez.

Mas Obama não o fez. Ele começou mal. Se compararmos os primeiros cem dias de Roosevelt aos primeiros cem dias de Obama, o que salta à vista é a disposição de Roosevelt em aceitar assessores não oficiais, em experimentar algo novo, comparada à insistência de Obama em se conservar no centro. Acho que ele desperdiçou sua chance.

PERGUNTA - A solução de dois Estados, conforme visualizada no momento, é uma perspectiva digna de crédito para a Palestina?

HOBSBAWM - Pessoalmente, duvido que ela exista no momento. Seja qual for a solução possível, nada vai acontecer enquanto os americanos não decidirem mudar totalmente de posição e aplicar pressão sobre Israel.

PERGUNTA - Existem lugares do mundo nos quais o sr. acha que projetos positivos e progressistas ainda estejam vivos ou tenham chances de ser reativados?

HOBSBAWM - Na América Latina, com certeza, a política e o discurso público geral ainda são conduzidos nos velhos termos do iluminismo -liberais, socialistas, comunistas.

Esses são os lugares onde se encontram militaristas que falam como socialistas -que "são" socialistas. Encontram-se fenômenos como [o presidente] Lula, baseado em um movimento da classe trabalhadora, e [o presidente boliviano Evo] Morales.

Para onde isso vai levar é outra questão, mas a velha linguagem ainda pode ser falada, e os velhos modos políticos ainda estão disponíveis.

Não estou inteiramente certo quanto à América Central, embora existam indícios de um ligeiro "revival" da tradição da revolução no próprio México -não que isso vá muito longe, na medida em que o México já foi virtualmente integrado à economia americana.

É possível que projetos progressistas possam renascer na Índia, devido à força institucional da tradição secular de Nehru [que se tornou premiê após a independência do país, em 1947]. Mas isso não parece penetrar muito entre as massas.

Além disso, o legado dos velhos movimentos trabalhistas, socialistas e comunistas na Europa continua bastante forte.

Desconfio que, em algum momento, a herança do comunismo, por exemplo nos Bálcãs ou até mesmo em parte da Rússia, possa se manifestar de maneiras que não podemos prever. O que vai acontecer na China eu não sei. Mas não há dúvida de que eles [os chineses] estão pensando em termos diferentes, não em termos maoístas ou marxistas modificados.

Esta entrevista foi publicada originalmente na edição de janeiro/fevereiro da revista britânica "New Left Review".


Tradução de Clara Allain.
FOLHA ONLINE
Leia a íntegra da entrevista
www.folha.com.br/101031


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